Na contagem populacional, mulheres e negros são maioria. No dia a dia, no entanto, são diversos os fatores com bases históricas que os torna minoria social e alvos de violência. Entre o público feminino, na Bahia, essa realidade atingiu um extremo nos últimos anos, uma vez que desde 2020 o estado ocupa a liderança no número de homicídios de mulheres. Já entre os negros, houve aumento de 16,8% na quantidade de assassinatos nos últimos dez anos. Os dados são do Atlas da Violência 2024, divulgado nesta terça-feira (18) e produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Somente em 2022, a Bahia registrou 411 assassinatos de mulheres, gerando uma taxa de 5,3 homicídios por 100 mil habitantes do estado. Para Vanessa Cavalcanti, professora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (PPGNEIM – Ufba) e integrante do Observatório de Feminicídios, a violência contra a mulher não está descolada do cenário alarmante vivido pelo estado, mas há especificidades históricas, como o patriarcado.
“A Bahia passou a ser um território de trânsito. Rotas de tráfico, interiorização de máfias, movimentos conservadores e ‘justiça com as próprias mãos e armas’ revelam problemas públicos e privados. Quando mentalidade machista e misógina são colocadas como cotidianas e sem respostas de controle e segurança, meninas e mulheres viram alvos”, aponta a especialista.
Quando o recorte de raça é inserido no contexto da violência contra a mulher, a vulnerabilidade das mulheres negras se torna evidente. Isso porque, o assassinato delas corresponde a 90% (368) do total de casos de homicídios de mulheres contabilizados em 2022. O número é quase dez vezes maior do que o total de mortes violentas de não negras, que foi de 38 naquele ano.
Vanessa Cavalcanti chama atenção para o fato de que a falta de acesso à assistência e à qualidade de direitos básicos, como moradia, explicam a situação de risco em que vivem as mulheres negras. “Elas ocupam territórios mais vulneráveis ou com menor assistência social e das forças de segurança, acesso à justiça social e instituições fortes, para além de uma Casa da Mulher Brasileira. No caso da Bahia, devemos considerar que, com a população majoritariamente feminina e negra, os feminicídios expressam também relações e identidades sociais e demográficas”, analisa.
Para ela, enquanto acesso, informação e agendas transversais não forem bem conduzidas, haverá ‘violências sobrepostas’, termo que usa para nomear as violências tipificadas não qualificadas ou menosprezadas por instituições responsáveis por direitos, bem como violências de gênero acrescidas de racismo, LGBTfobia, divisão de classes e outras vulnerabilidades.
Das 72.527 mortes ocorridas na Bahia entre 2012 e 2022, 90,7% (65.789) foram de pessoas negras, incluindo homens e mulheres. Em 2022, ano dos dados mais recentes divulgados pelo Atlas da Violência 2024 nesta segunda-feira (18), a Bahia registrou 6.776 homicídios, sendo 6.259 – ou 92% – de pessoas negras.
Em um estado de maioria negra, a morte de pessoas dessa etnia pode parecer uma simples questão estatística. No entanto, conforme aponta o historiador Dudu Ribeiro, coordenador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) e do Observatório da Segurança na Bahia, essas mortes refletem a lógica de violência sistemática e a distribuição desigual de possibilidades de cidadania, alicerces da construção do estado brasileiro.
“Essa lógica se mantém também a partir da distribuição da morte enquanto política de estado. Nas últimas décadas, a opção do estado brasileiro, reproduzido na atuação das suas redes de segurança também na Bahia, é a nomeada guerras às drogas, que tem, na verdade, reforçado uma lógica de violência, de distribuição desigual de humanidades, além de sequestrar o orçamento público e permitir a continuidade de uma desigualdade socio-racial que é histórica e que privilegia uma supremacia branca”, destaca o especialista.
Enquanto a taxa de homicídios de negros por 100 mil habitantes na Bahia foi de 51,6, a taxa de assassinatos de não negros por 100 mil habitantes foi de 14,7. Para mudar essa realidade, Dudu Ribeiro acredita que é necessário criar condições para superar o modelo atual de segurança pública que privilegia o confronto. “Isso vai ser construído a partir do diálogo permanente com a sociedade civil, com as universidades e com uma perspectiva intersetorial de segurança pública, que permita que os diversos entes, secretarias e espaços dos governos dialoguem para a produção da segurança conjuntamente, e abandonem o pensamento de que a segurança pública deve ser pensada exclusivamente a partir da das polícias”, defende.
Durante o processo de construção de construção desse modelo intersetorial, ele sugere caminhos e estratégias de proteção que a população negra pode adotar para sobreviver. “É fundamental o investimento nas experiências da sociedade civil organizada, nas experiências comunitárias que permitem um sentido de coletividade e aumenta as condições de produzir proteção nos territórios. É fundamental que, muito para além das atitudes individuais, a gente consiga criar as condições, cada vez mais fortalecidas, das comunidades negras ocuparem a política, colocarem a sua experiência comunitária e de vida na formulação das políticas públicas”, finaliza Dudu Ribeiro.
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